Uma proposta no projeto de reforma do Código Civil pode alterar as regras de herança no Brasil e afetar pessoas casadas ou em união estável. O texto, que foi protocolado no Senado no início deste ano, retira os cônjuges da condição de herdeiro necessário – título dado a quem tem direito a uma parte mínima da herança, conhecida como legítima, que corresponde à metade do patrimônio do falecido. Vale lembrar, no entanto, que a medida ainda precisa ser votada no Congresso.
Atualmente, além dos parceiros, os ascendentes – como pais, avós e bisavós – e os descendentes – como filhos, netos e bisnetos – de uma pessoa também são considerados herdeiros necessários. “Supondo que o titular dos bens tenha filhos, o cônjuge vai dividir igualmente com eles a parte legítima da herança“, explica Patricia Valle Razuk, sócia do PHR Advogados e especialista em Direito de Família e Sucessões. “Na ausência de descendentes e ascendentes, o cônjuge tem direito garantido a 50% do patrimônio”, acrescenta.
A outra metade da herança, nomeada como disponível, deve ser distribuída conforme a vontade expressa no testamento, ao contrário da parte legítima, que não pode ser retirada do herdeiro necessário, exceto em casos graves, como nas situações em que a pessoa é violenta com o titular dos bens. Nesta matéria, explicamos quando é possível deserdar um filho, por exemplo.
Razuk destaca que, com a mudança proposta, o cônjuge não teria mais o direito obrigatório à herança. A advogada avalia, porém, que não há motivos para pânico, pois a medida é apenas um projeto. “Ainda existe um longo caminho pela frente. Precisamos acompanhar como serão as votações e como o Senado e a Câmara vão modificar o texto. Alguns clientes já aparecem no escritório preocupados, mas eu sempre reforço que, por enquanto, nada mudou”, afirma.
As diferenças para cada regime de bens
Os efeitos da possível reforma no Código Civil também tendem a variar conforme o regime do casamento. Na comunhão universal, por exemplo, não terá mudanças. Nela, todos os bens, adquiridos antes ou durante a união, passam a pertencer a ambos os cônjuges em partes iguais. “Nesse caso, o cônjuge não é herdeiro, ele é meeiro desse patrimônio. Independente de qualquer alteração na lei, o parceiro sobrevivente receberá metade do patrimônio”, explica Mérces da Silva Nunes, sócia do Silva Nunes Advogados e especialista em Direito de Família e Estratégias Sucessórias.
Já na comunhão parcial de bens, a advogada destaca que o cônjuge é meeiro somente do que foi adquirido durante o casamento – condição que permanecerá igual mesmo se a reforma for aprovada. Em relação aos bens particulares do parceiro (aqueles conquistados antes da união), o cônjuge hoje entra como herdeiro necessário, o que deve mudar. “Como a alteração no Código, ele deixará de ter direito obrigatório a esse patrimônio particular. Ele só continuará sendo meeiro do que foi construído dentro do casamento”, ressalta Nunes.
A maior alteração se dará para quem é casado com separação total de bens. Nesse caso, não existe a figura do meeiro, só do herdeiro, pois cada cônjuge possui seus próprios bens de forma individualizada. Em caso de falecimento, o parceiro sobrevivente tem direito a acessar parte do patrimônio do falecido por ser considerado um herdeiro necessário. Com a reforma, no entanto, ele perderá essa garantia.
Em relação às pessoas em união estável, Nunes explica que o Supremo Tribunal Federal (STF) equipara o companheiro ao cônjuge. “A Corte não faz distinção patrimonial entre casamento e união estável. Embora exista uma diferença na nomenclatura — cônjuge e companheiro —, os direitos são os mesmos”, afirma.
Isso significa que quem vive em união estável também será impactado pela possível mudança no Código Civil, já que, atualmente, é considerado herdeiro necessário — e poderá deixar de ser, caso a proposta avance.
Nada muda, porém, para o ex-cônjuge. Ele não é considerado herdeiro necessário e, hoje, só tem direito à herança se for expressamente incluído em testamento.
Proposta divide opiniões de especialistas
O projeto de excluir os cônjuges da parte legítima da herança gera controvérsia entre especialistas da área. Enquanto alguns entendem que a medida pode garantir maior liberdade na realização do planejamento sucessório, outros enxergam que a mudança coloca principalmente em risco a figura feminina da relação.
A advogada Miriane Ferreira, que acumula 1,9 milhão de seguidores no Instagram e compartilha dicas de Direito com seus seguidores, chegou a criar um abaixo-assinado on-line contra a proposta. Segundo ela, o documento já conta com mais de 200 mil assinaturas. “Eu considero esse projeto extremamente misógino, porque ele vai prejudicar diretamente as mulheres, ignorando que existe o trabalho invisível com a casa e com os filhos, por exemplo”, ressalta.
Na visão da especialista, muitas esposas ficariam desprotegidas, especialmente nos casos em que precisam se dedicar às atividades domésticas, enquanto os maridos acumulam seu patrimônio particular. “O nosso cenário ainda é desproporcional: além de precisarem se desdobrar em várias funções, as mulheres ganham menos e estão em posições menos favoráveis no mercado de trabalho. Com essa mudança, elas correm o risco de perder uma proteção essencial justamente em um momento delicado da vida”, afirma.
Ferreira também enxerga que a proposta ignora o contexto da violência patrimonial no Brasil — um tipo de abuso que ocorre no âmbito doméstico e impede a mulher de exercer controle sobre suas finanças e bens. Segundo ela, a mudança na lei poderia deixar muitas esposas ainda mais vulneráveis, tornando-as dependentes da vontade dos maridos para terem acesso a qualquer parte do patrimônio.
Gustavo Costa, Chief Operating Officer (COO) da Herdei, fintech que oferece soluções digitais para inventários extrajudiciais e planejamento sucessório, explica que, do ponto de vista técnico, a proposta traz uma maior autonomia da vontade e estimula o debate sobre o planejamento patrimonial, o que ele considera positivo. “No entanto, a mudança também exige um maior nível de consciência e informação jurídica da população, o que nem sempre é a realidade”, pondera.
A advogada Erika Feitosa Chaves, sócia do escritório Vieira Rezende Advogados, tem a mesma opinião. “É difícil dizer se a medida é positiva ou negativa. Isso porque a exclusão dos cônjuges do rol de herdeiros necessários traria maior liberdade de disposição dos bens pelo falecido. Por outro lado, poderia gerar inseguranças e complexidades nas relações entre os parceiros.”
No que se refere à liberdade para estruturar o testamento, Nunes, do Silva Nunes Advogados, acredita que a mudança é positiva. “O fato de o cônjuge ser herdeiro necessário atualmente impõe limitações a quem deseja planejar a sucessão. Por exemplo, se uma pessoa tem dois filhos e um marido, precisa considerar que os três terão direitos iguais à parte legítima da herança, o que reduz sua margem de escolha”, explica.
O que fazer para se proteger?
Quem deseja garantir os direitos do cônjuge em meio às incertezas em torno das regras de herança no Brasil precisa se preparar. “O planejamento sucessório e financeiro familiar vai ser um tema cada vez mais conversado pelos casais futuramente, caso essa mudança seja aprovada”, ressalta Razuk, do PHR Advogados.
Há diferentes medidas para proteger o parceiro, independentemente do regime de bens do casamento. “Uma das opções é a elaboração de um testamento para que o cônjuge disponha da parte disponível de seus bens em favor do seu esposo ou esposa. A transferência de bens, ainda em vida, por meio de doação, representa outra saída”, afirma Chaves, do Vieira Rezende Advogados.
Costa, da Herdei, destaca que o testamento é o instrumento mais direto e acessível para garantir proteção ao cônjuge. Caso a reforma do Código Civil seja aprovada, o documento permitirá que o parceiro sobrevivente receba até 100% do patrimônio disponível, caso não existam herdeiros necessários, ou até 50% quando existirem.
O especialista lembra que planos de previdência privada e seguros de vida são outras alternativas possíveis, já que não entram no inventário e podem ser direcionadas ao cônjuge.
O COO da Herdei ressalta ainda que, no regime de separação total de bens, o planejamento será ainda mais necessário, pois não há meação e o parceiro poderá ficar totalmente de fora da sucessão. “Se o projeto de reforma do Código Civil for aprovado, muitas pessoas poderão presumir que o cônjuge estará naturalmente protegido na herança, quando, na prática, ele correrá o risco de ser completamente excluído da sucessão”, pontua.
Fonte: E-investidor